08 junho 2013

Op Fietsland: no País das Bikes

Às vezes irrita um pouco a forma simplista como as pessoas encaram problemas complexos. Nos últimos meses, vemos rodando no Brasil um monte de iniciativas e campanhas nas mais diversas áreas do nosso dia a dia, buscando alterar algo na nossa sociedade.

Desde sacolinhas de mercado até discussão sobre maioridade penal, passando pelo incentivo ao uso de bicicletas, as discussões acabam se reduzindo a “vamos fazer isso, pois isso é feito na Europa (ou EUA) e dá certo”. OK, a premissa de copiar bons exemplos é bastante válida, mas desde que se estude e entenda o ambiente todo, não apenas forçando uma mudança única que acabará por ser pouco efetiva. Se é pra copiar, faça bem feito.

A ideia deste post é dar uma panorâmica sobre uma sociedade que vive sobre duas rodas e ver o que podemos adotar como boas práticas e o que não é tão viável, dadas as diferenças de realidade. A Holanda é exemplo mesmo de país que priorizou a bicicleta (ou fiets, como eles chamam aqui) como meio de transporte, mas a coisa é bem mais complexa do que fechar uma faixa de rolamento de trânsito com cones e falar “vá de bike!”.

Aliás, veremos o quanto esta solução propagandeada por muitas prefeituras – notadamente a de São Paulo – não apenas é simplista, mas é porca. Mas, primeiro, um pouco sobre os holandeses e as bikes.


HISTÓRICO

O holandês não nasceu sobre duas rodas e, por mais que a geografia do país facilite brutalmente esse meio de transporte, as coisas nem sempre foram assim. Esse vídeo, divulgado no YouTube uns meses atrás, mostra que o fato do holandês viver em duas rodas não é resultado de uma geração espontânea, mas de uma política de estado séria, ampla e de longo prazo que começou no início dos anos 70. Está em inglês, mas é só clicar no botão de legendas, que tem versão em português:



CICLOVIAS

Essa é a parte principal, é o que determina se ciclistas irão às ruas ou ficarão em seus carros; no fim a diferença entre se pedalar com segurança ou não. Na Holanda, dá pra separar a relação carro-bicicleta em 4 grupos:

- Estradas: nas estradas acima de 80 km/h de limite de velocidade, nem sempre há uma ciclovia, mas quando há, ela é tão separada da estrada que muitas vezes nem dá pra ver. Ela segue mais por dentro das cidades, de forma que você pode chegar de A a B da mesma forma, mas longe dos carros. Não existe essa de pedalar no acostamento.

- Avenidas: chamaremos aqui de avenida aquelas que possuem 2 ou mais faixas de rolamento e velocidade máxima de 70 km/h. Nesse caso, a ciclovia sempre é separada da avenida. A ciclovia pega um pedaço do que seria a calçada, nesse caso, quase sempre com piso específico e divisão física (desnível) pra calçada. Algumas vezes, a ciclovia é na “pista local” destas avenidas, onde carros entram para estacionar ou, talvez, virar à direita; nesses casos, a prioridade é total do ciclista.
Calçada, Ciclovia e Avenida. Simples.

- Ruas maiores: são as de limite de 50 km/h. Diria que nessas ruas, uns 80% das ciclovias também são separadas da faixa de rolamento, na calçada. Por falta de espaço, nem sempre a divisão com os pedestres é física, podendo ser apenas um caminho pintado no chão. Nos 20% onde a ciclovia é um pedaço da rua, ela sempre é pintada em cor bem diferente e há espaço suficiente para carro e ciclista passarem sem se bater, indo e vindo.
Lá longe tem uma avenida de 50km/h

Ou então, assim, mas com espaço pra todos

- Ruas pequenas: nas ruas de bairro, aquelas só com trânsito local, o limite de velocidade é de 30 km/h. Na maior parte, há um pedaço de ciclovia pintado no canto da faixa, mas pelo tamanho da rua, nem sempre cabe carro indo e voltando com ciclistas dos dois lados. Em outros casos, não há nada pintado e o ciclista pode usar a rua normalmente. Em todos os casos, a prioridade é totalmente do ciclista. Já presenciei diversas vezes até ônibus esperando pacientemente a velhinha de bicicleta conseguir encostar pra ele passar.
Simples. 
Vias de 30km/h estão sinalizadas. Sempre há placas lembrando:  Zone 30!

O que se faz em grandes cidades colocando apenas cones como proteção numa faixa de rolamento em uma avenida com limite de 80 km/h é o que chamei lá em cima de solução porca: é ruim para os carros, pois diminui tremendamente o seu espaço, aumentando o já caótico trânsito. E é ruim para os ciclistas, pois cone não protege a vida de ninguém. Acho um absurdo ver uma Avenida Paulista com uma solução dessas, sendo que sua calçada é larguíssima, podendo acomodar tranquilamente uma ciclovia.

Ciclovia de cones é coisa pra final de semana, pra ciclismo de lazer. Não pra servir como meio de transporte sério.

Só que é mais fácil, mais barato e mais rápido os prefeitos comprarem uns pouco milhares de cones e falar: “olha, temos ciclovias!”. Não, não temos ciclovias, temos soluções mambembes.
O nível que o pessoal chegou. Num entroncamento de grandes avenidas, temos essa rotatória suspensa de ciclovia.

A Holanda é o país mais seguro para se andar de bicicleta no mundo, mesmo sendo o país onde mais se pedala. Pra ter uma idéia, um holandês pedala, em média, 3 km por dia. Veja bem, estamos falando em médias diárias e da população toda. Mesmo assim, o índice é de 2 mortes a cada 100 milhões de km pedalados. Comparando, na Grã Bretanha, o índice é de 8 mortes. Isso porque ninguém usa capacete, exceto alguns ciclistas de corrida e algumas crianças. Sério, nunca vi um adulto numa bike comum usando capacete.


EDUCAÇÃO

Primeiro, falamos dos motoristas. A coisa é simples: cerca de 90% da população adulta da Holanda usa bicicleta ao menos uma vez por semana (tirando o inverno), de forma que virtualmente todo mundo é ciclista. Logo, o motorista entende o que é estar em duas rodas. Além disso, há a lei. Não sei exatamente quais são as penas, mas já nos falaram algumas vezes que se puder escolher, atropele um carrinho de bebê, um cadeirante ou uma freira idosa, mas nunca um ciclista! Mesmo que ele não tenha razão, a dor de cabeça será enorme. No fim, é fácil nos acostumarmos a olhar pra trás antes de virar, mesmo que pra direita.

Mas, aqui tem outro ponto: o ciclista! Sim, o ciclista holandês é mal educado, não respeita pedestre (nem nas faixas de pedestre sobre a ciclovia), não respeita sinalização e acha que pode pedalar em qualquer lugar, caso não esteja contente com os 19.000km de ciclovias do país. Tudo em nome da inércia. Agora, tem coisas que o ciclista holandês não faz: ele não anda na contra mão em ruas (só nas ciclovias), ele não anda entre os carros e ele não sai trombando pedestres fora da ciclovia. Dentro das ciclovias, fazem o diabo; fora delas, são comportados.
Tem semáforo de bike aqui...

Outro detalhe: ciclistas são multados. Muitos adoram andar em ruas de pedestres no horário comercial, mas se a polícia pega, são € 30,00 a menos na carteira.

Pra começar a andar sozinha de bicicleta, qualquer criança a partir de 7 anos de idade faz uma espécie de prova, mostrando que sabe andar de bicicleta, que entende sinalização e que pode se virar sozinha. Dessa forma, ela ganha uma espécie de “Carteira de Ciclista”. Educação de base.


CLIMA E GEOGRAFIA

Se tem algo que a Holanda é absolutamente incomparável para o ciclismo, é a sua geografia. É um país muito pequeno, dá pra ir de uma cidade a outra de bicicleta sem ser nenhum Bradley Wiggins. As cidades são pequenas; Amsterdam, por exemplo, não tem 800.000 habitantes e deve dar pra cruza-la de bike, de um canto a outro em uma hora, se bobear. Em Eindhoven, que é uma cidade bem espalhada, não leva-se mais de 40 minutos entre seus extremos mais distantes.

Por fim, o país é absoluta, total e irritantemente plano.

O clima também favorece demais. Primeiro que faz pouco sol, o que o ciclista que vai arrumadinho pro trabalho, agradece. Na maior parte do ano, diria que a temperatura gira na casa dos 5oC a 15oC, ideal pra pedalar sem suar em bica. Se aumentarmos em 10 graus pra cima e pra baixo esse intervalo (de -5oC a 25oC), pronto: teremos 99% das horas do ano em uma temperatura que dá pra encarar uma ciclovia sem se matar. Acredite, com uma boa proteção e um pouco de costume dá pra pedalar na casa do zero grau, ainda mais se forem trechos curtos. Tá, muita gente deixa as magrelas em casa e pega ônibus nessa época do ano, mas que dá, dá.
Chova, faça sol... ou neve...

Chove pouco, embora o clima seja constantemente nublado, chuva mesmo não é muito. E, quase sempre, aquela chuva leve, chata, que dá pra encarar de boa com uma capa.
Mais que suficiente...

Só o que atrapalha é o vento: única razão pra sua bicicleta ter marchas. Não é à toa que esse é o país dos moinhos, aqui venta que nem gente grande.

Por que discorrer sobre isso? Essas condições são fundamentais pra termos a bicicleta como um meio de transporte principal. Muita gente vai e volta aos seus destinos apenas de bike, sem comutar pra nenhum outro meio.

Fico lembrando da vida em São Paulo: morávamos a 22 km de onde eu trabalhava (aqui, em 18 km, estou na Bélgica, mais especificamente na abadia/cervejaria trapista de Achel), numa rua que era uma ladeira que dava medo de encarar até a pé. Fora isso, é desagradável chegar pro trabalho após pedalar sob um sol de mais de 25oC, onde se chega melado. Pra coroar, ainda a terrível rotina de temporais de fim de tarde. É algo a se encarar, não dá pra pensar que qualquer um enfrenta.

O deslocamento médio de um holandês a cada vez que pega sua bicicleta é de 2,3km. Na boa, dado o tamanho de São Paulo, nem pra casa dos meus pais ou dos pais da Carol (e olha que pros padrões paulistanos, eles moravam muito perto de nós – em direções opostas, porém) nós chegaríamos em menos de 2,3 km de casa. O deslocamento médio seria muito maior.

Daí a necessidade de se pensar na bike, em grandes cidades, como um meio de transporte complementar, muito mais que como o principal.


ESTACIONAMENTO

O número de magrelas na Holanda é absurdo: são cerca de 20 milhões de fietsen para uma população de 16,5 milhões de pessoas. Muita gente tem 2 ou 3 bikes.
Fietsstalling no nosso prédio

Pega o caso do chefe da Carol por exemplo: o sujeito mora numa cidade a 50 minutos de trem de Eindhoven. Mesmo tendo direito a carro da empresa, dado seu alto cargo, ele tem uma bike em sua cidade, que ele pega e vai pra estação de trem. Lá, tem onde guardar a bichinha, seja num lugar aberto e grátis ou num abrigado e pago. Pega seu trem e desce na estação de Eindhoven, onde tem outra bike, num estacionamento próprio, esperando para os 10 minutos finais de trajeto. Além das duas, ele tem um terceira, de corrida, que usa pra dar suas voltas de final de semana. Como ele, muita gente se locomove assim no país.

Pra isso, as estações de trem possuem estacionamentos gigantes. Em Amsterdam tem até prédio garagem de bike. Nos canais da cidade, há barcos-garagem. E estão sempre lotados. Prédios de apartamentos ou de escritórios, todos possuem seus estacionamentos próprios.
Estacionamentos organizados...

A maioria dos pontos de ônibus possuem lugares pra prender a bike, para as pessoas que moram mais afastadas das linhas de ônibus. Todas as lojas possuem alguns lugares pra prender bicicletas de funcionários e clientes. Não vou dizer que seja suficiente, afinal sempre acontece de aqui ou ali ter que amarrar num poste ou numa grade, mas principalmente na conexão com outros meios de transporte há MUITO lugar pra deixar sua bike.
... ou bagunçados!

Infraestrutura para ciclismo não é só ciclovia.

PEQUENOS GRANDES DETALHES

Já que falamos em infraestrutura, vamos pontuar algumas coisinhas que podem passar batido numa política de ciclismo, mas que acabam sendo empecilhos no dia a dia.

Muitas empresas aqui disponibilizam chuveiros para seus empregados, caso queiram tomar um banho, após a pedalação. Tá, banho não é a atividade mais popular entre os holandeses, mas voltemos a pensar no Brasil com seu clima quente e a essa mania besta de tomar banho todo dia. A maioria do pessoal que usa bike para o trabalho acaba fazendo acordo com academias de ginástica pra tomar banho antes do expediente.

Segurança é outro ponto fundamental, especialmente em grandes cidades. Metade das crianças e aborrecentes de 9 a 17 anos na Holanda – pra ser mais preciso, 49% segundo pesquisa – vai sozinha de bicicleta para a escola. Numa cidade como São Paulo, esse número seria impensável, mesmo se todas as condições fossem ideais. E para o trabalho? Eu tinha medo de andar com o laptop dentro do carro, imagina de bicicleta? É ser parado no sinal e ficar sem nada. Sim, é uma condição que não depende de políticas ciclísticas ou que possa ser remediada logo. Mas, é um fato que não pode ser ignorado por quem formula as políticas de transporte.

Outro ponto é o furto das próprias bikes. Sim, na Holanda o furto – vale lembrar que furto é quando roubam seu bem sem você estar presente ou ser ameaçado fisicamente – é um crime comum e cerca de 4% das bikes são roubadas anualmente indo parar nos comércios alternativos. Tanto que muito holandês usa umas bikes bem fuleiras para o dia-a-dia. Essa que ele larga o dia todo na estação, costuma ser do tipo caindo aos pedaços. Mas, sempre tem como minimizar o risco, tomando cuidado onde você para e como tranca sua fiets. Tenho pra mim que se tivéssemos no Brasil bicicletas paradas nas ruas em todo canto da cidade, o índice de roubos seria bem maior. E aí? Vai arriscar ficar sem sua bike, caso não tenha um lugar seguro pra deixa-la?

Curiosamente, não existe na Holanda uma solução comum na maioria das grandes cidades europeias e que existe também em São Paulo e no Rio, que é a bicicleta comunitária, aquelas estações onde você pega uma bike e paga um X por hora até larga-la em outra estação similar. O motivo é simples: todo mundo tem bicicleta, de forma que um sistema desses não tem razão de existir. Nas cidades turísticas, como Amsterdam, também aluga-se bikes a cada esquina.  

Falando em turismo, o cicloturismo é quase universal por aqui. Em qualquer lugar, seja em internet, Tourist Information ou livrarias, há mapas e mais mapas de Fietsroutes, rotas de bicicletas, especialmente pelas estradinhas do interior. Algumas cidades, como Eindhoven, têm percursos marcados para ciclistas de diversos níveis. Nas férias, também, holandês adora viajar de motorhome e trailers (é mais barato, claro) e sempre tem várias fietsen presas da traseira deles.

Também não dá pra ignorar o ciclismo como esporte. Todas as cidades têm seu Wielervereigen, ou clubes de ciclismo, para esportistas de todas as idades e níveis. Provas como o Tour de France são verdadeiras Copas do Mundo, onde todos acompanham dia a dia as etapas. Nesse caso, eles reclamam da falta de montanhas no país e justificam que nunca conseguem ter um ciclista de ponta no Tour, já que não conseguem formar “escaladores”, ciclistas bons de montanha.

Essa pode parecer utopia num país que começa a pensar em bicicletas como meio de transporte, mas em algumas cidades já implantaram semáforos inteligentes que aumentam o tempo para ciclistas quando está chovendo, ou pior, nevando. Esse ano implantaram semáforos assim na cidade de Groningen, no norte da Holanda. A expectativa é que se espalhem pelas demais cidades do país brevemente.

Como disse, pode parecer utopia, mas é uma demonstração de como esse meio de transporte é prioritário para os governos. No Brasil, infelizmente, ainda é tratado mais com fins eleitoreiros do que realmente como política pública.


ENFIM...

Acho que algumas ideias podem ser bem aproveitadas, por mais que seja inviável pensar no ciclismo como meio universal de transporte no Brasil. Se conseguirmos diminuir o número de pessoas que pega um carro pra andar 4 ou 5 km ou mesmo dar uma opção para o sujeito que precisa chegar a uma estação de metrô pra ir trabalhar, o trânsito das grandes cidades agradece.

Pensando racionalmente, não dá pra espalhar ciclovias por todas as ruas das cidades brasileiras, mas que se comece fazendo ciclovias DE VERDADE em alguns principais corredores, que possam carregar o tráfego mais intenso. Até porque a quantidade de ciclistas é outro item de segurança. Mais improvável de um motorista de ônibus não te ver se você estiver junto de outras dezenas de ciclistas.

Também que se invista em locais para estacionar bicicletas especialmente nos pontos de comutação de transporte, como estações de metrô e terminais de ônibus. Claro, com um mínimo de segurança pro sujeito encontrar sua magrela quando voltar.

Por fim, que as próprias empresas e condomínios comecem a pensar em investir num cobertinho pra guardar bike e num pequeno vestiário para funcionários e visitantes. Caramba, estou falando de investimentos mínimos...


É isso, não precisamos ser uma Holanda pra implantar políticas sérias e racionais para o ciclismo.

Tot ziens!